Estava na iminência de me sentar no sofá para assistir a um filme do catálogo da Netflix quando um raio de sol decidiu pousar nos meus globos oculares. Face a este atrevimento solar, semicerrei os olhos e fiz cara de amuado. Que eu saiba não tinha convidado a luz, mas ela entrou de rompante no meu domicílio na mesma, sem qualquer aviso prévio. Combati a preguiça e cliquei num botão para acionar a descida das persianas. Temo que a descida das persianas não tenha sido acionada, porque um clarão permanecia a iluminar-me a sala. Acontece que o estore se encontrava pifado ou até mesmo ‘não responsivo’, como eu o descrevi à minha progenitora.
Acabo por decidir ir espairecer, interpretando ingenuamente a iluminação da minha face como um convite à vida exterior. Enquanto passeio, vou observando o que me rodeia e constato que toda a gente na rua está com um telemóvel na mão. E, talvez ligeiramente mais preocupante, todos estão com a cara no telemóvel. Uns fazem caretas para as selfies enquanto que outros digitam caracteres ferozmente.
Atualmente, as crianças são expelidas dos úteros das mães respetivas com um tablet na mão e um carregador no pé. Sei de fonte segura que a primeira coisa que os médicos fazem, depois de efetuar o unboxing do recém-nascido e antes de cortar o cordão umbilical, é registar se a ligação mãe-filho é por USB ou HDMI.
Num concerto, a malta paga bilhete para vibrar na primeira fila com a banda. Mas o que vibra, curiosamente, é o telemóvel a notificar o utilizador de fraca bateria. E atenção que a culpa não é do baterista, visto que o solo até foi competente. Ou seja, a audiência em vez de saborear o presente, quer gravar os momentos para o futuro. As pessoas acabam por experienciar todo o concerto através de um retângulo luminoso, quase em terceira pessoa. Mas será que o produto final, um vídeo tremido com 20% banda a atuar, 10% teto da tenda e 70% pessoa que está a gravar a mostrar que está no concerto, não compensa? Questão interessante que guardo para o leitor responder.
Analogamente, uma situação muito semelhante ocorre nas peças de teatro infantil da escola primária. Quando os pequenotes estão a dar os primeiros passos no mundo da representação e se encontram a explodir de energia cénica, olham para a plateia numa tentativa de encontrar os pais. E encontram! Os pais são o Samsung Galaxy S10 e o iPhone 13. Eu sei, parece chocante imaginar um casamento entre a Samsung e a Apple, mas a verdade é que as crianças apenas conseguem ver a câmara traseira do smartphone das várias pessoas presentes.
Algures pelo caminho da reflexão, esqueci-me que estava a passear. Fui contra uma pessoa. A minha sorte foi ela estar com o telemóvel na mão e a cara no telemóvel. Foi mais fácil atribuir as culpas do embate. Afinal, foi a pessoa que foi contra mim.
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